quinta-feira, 15 de maio de 2008

A história de uma viagem





A ansiedade já era visível no semblante de todos. Por mais que o disfarce fizesse parte da história dessa família, que para todas as perguntas já tinha resposta pronta do tipo no pasa nada, os fatos não negavam a grande e profunda espera, uma espera de 30 anos para uns, e de toda uma vida para outros, uma espera que nunca podia se saber se em vão, se “Deus proverá” ou proveria, ora, mas... “ele sempre provê!” - também uma das frases mais disputadas entre as bocas resignadas, cujos destinos quisera Deus - ou a vida – pôr à prova, ora da solidão, da revolta, da saudade, da doença, das dificuldades, da precocidade, da injustiça. Fazer o quê???? Ah, mas não se poderia dizer que fosse vítima. Isso não. Tudo realmente tinha um sentido, ou tinha que ter!, um plano maior, onde o fim do túnel seria o da glória, fortaleza ou redenção, e, “por nos deixar respirar, por nos deixar existir... Deus lhe pague!” Em meio aos acontecimentos, o tentar seguir vivendo, mesmo sem querer, como se algo os aguardasse mais à frente.

Ah! A viagem! Era por ela, talvez, que tivessem esperado tanto, ou também por ela que tivessem continuado até entao, pra no futuro, já presente, pudesse existir como um grande revival dos “tempos que não voltam mais”!

E chegara o grande dia. Partiram como sempre quiseram partir, despretensiosamente, após anos dos fatos mais melancólicos, num momento que representava vida nova para alguns e espera de outro porvir não necessariamente tão novo para outros, mas com certeza, um momento de esperança. Haviam passado recentemente por mais uma provação e vencido. Nada mais poderia ameaçá-los. Estavam preparados até os dentes para os fatos mais inusitados. Uns de forma mais ativa, já outros, coadjuvantes da sua própria história, a esperar pelo desenrolar dos fatos, pela chegada de emails ou um simples tocar de celular.

E como Deus sempre presente está, não seria dessa vez que ficaria de fora. Logo agora, que tanto precisavam dele. E aí, numa cronologia descendente, Conceição se prostrou em frente, Santiago mostrou seu caminho, Nossa Sra. De Canaã preparou o terreno ainda em Pozuelo, Expedito pediu licença e São José deu a bênçao. Igrejas mil a cada esquina, e em cada uma delas, um pit stop para água benta, reflexão, oração, pedido, ou um simples dedinho de prosa. Até Nossa Sra. de Schoenstatt, que não é afeita a maiores exuberâncias, escondidinha lá no canto, deu a graça de se mostrar e, meio sem querer, abriu suas pequenitas portas. E assim, pelo caminho, repetiam todos, os de lá e os de cá: “viemos em paz!” ou, plageando o dono da festa: “que a paz esteja com vosotros”.

E assim seguiram. O simples percurso de ida já dizia mais do que toda uma vida. Os sobrenomes replicados nas placas de trânsito que orientavam o caminho, como que propositalmente instaladas para sinalizar o grande evento, ou simplesmente para dizer: “Também sois filhos desta terra.” Outeiros espalhados a mil, representando o sobrenome Otero: Rochedo, Pedregoso. Placas de sinalização de lojas Vasquez, sobrenome de um avô, Vieitez no cartão de visita do dono do bar, Demetra nominando a compota e uma prima, outra prima Mári moradora de Ourense, cidade natal do pai, do avô e de tantos outros, Santiago nas placas e na face dos peregrinos, até os que nada tinham muito a ver com o íntimo reencontro, deram o ar de sua graça como Cabral e Santa Cristina, olha só! Estavam em casa mesmo! Isso sem falar na mistura gallega do espanhol com português, nas referências brasileiras até na praia, que apesar da água gelada, lembrava a conexão Brasil – Galícia/Espanha. De lá tentamos ver o tão famoso coqueiro das noites insones de um notívago de Boa Viagem. Em vão.

E finalmente as portas do desconhecido se abriram, estavam todos em casa. O reencontro comovente no bar, o presente em moeda ao bisneto, o bolo de noiva tão cuidadosamente elaborado com os ingredientes do lugar em retribuição à acolhida e lembrança dos velhos tempos, a volta às origens, ao princípio de quase tudo... O Pueblo formado por primos, primos dos primos, tios do pais e avós, netos, bisnetos, os de segundo e terceiro graus mais presentes do que os de primeiro, afinal... tempo tempo tempo tempo...!!! Impressionaram-se como alguns coadjuvantes de 30 anos atrás estavam presentes na lembrança de todos (coadjuvantes do conto, porém, também protagonistas da história), – “y donde está o Kiko que fazia isso ou aquilo???? E a Mary, enamorada do Luís quando pichota....????” E assim, parecia que foi ontem!

E aí, o reencontro seguiu o script dos contos infantis, viabilizado por um anjo de tia, ou por uma tia-anjo, que odeia que suas asinhas fiquem à mostra – prefere ser reconhecida mais pelas suas diabruras (mesmo que seja de uma diabinha do bem). Até na enfermidade repentina de um dos protagonistas, tudo lembrava “a vida como ela é”, sempre um reflexo da nossa condição humana, frágil, passageira, porém, também divina.

E assim acaba o conto. O conto de uma espera. O conto do reencontro. O conto que não se conta, pois quando se deram conta, já era. E à mesma família resta continuar esperando, saudosamente, que outros reencontros aconteçam, e que os coadjuvantes de hoje se transformem em protagonistas de amanha. O conto de uma viagem que virou história, ou a história de um conto que é, como a nossa vida, uma viagem.