Uma das melhores coisas do Cairo foi conhecer “Maria” (nome fictício), egípcia, 26 anos, cristã, graduada em história e pós-graduada em turismo, guia turístico. Apaixonou-se pelo meu filho de 6 anos, um doce de criatura (ambos), meiga, gentil, sonhadora, boa profissional; te explica tudo tim tim por tim tim sobre o Cairo e o Egito, em bom inglês, apesar do forte sotaque árabe. Com ela, aprendemos um pouco desde mitologia egípcia à vida cotidiana no Cairo. Espera, dentre outras coisas, um bom matrimônio cristão, o que é difícil numa população com 85% de muçulmanos. Surpreendi-me quando a convidei para vir a Madri e ela me disse que infelizmente ainda era solteira. Não compreendi de imediato, percebendo minha cara confusa me disse que não pode viajar sozinha solteira. Contudo, leva uma vida normal (e por que não seria?) de uma moça da sua idade, sai com amigas, vai a bares, festas, trabalha bastante nos fins de semana e feriados, mas quando entramos no detalhe do seu dia-a-dia, a religião é a tônica. Receia andar sozinha em certos lugares pois se sente ameaçada por alguns homens muçulmanos, tem amigos islâmicos, mas se incomoda com as freqüentes conversas religiosas na tentativa de fazê-la mudar de religião, e se sente um pouco oprimida. Quando falamos em português algumas palavras de origem árabe como "açúcar", por exemplo, fica feliz com as similaridades e se sente muito identificada com a nossa simpatia e informalidade. Respeita a religião islâmica, mas não deixa de olhar com ar sorridente quando passa uma mulher de burca com apenas os olhos de fora, e me diz com ar de cumplicidade: “- É que ela é tão bonita que não pode se mostrar. As consideradas mais bonitas são as que vivem mais tapadas”. As muçulmanas, algumas muito ocidentalizadas, vaidosas, maquiadas, não escondem o sorriso apesar do véu. Muitos casais de namorados islâmicos passeiam pelas ruas de mãos dadas sem vigilância paterna, meninas adolescentes ruidosas, crianças engraçadas, porém, se são mulheres, o véu muitas vezes diferencia o gosto pela moda e a classe social - alguns são lindíssimos e bem trabalhados. Na superficialidade, não vejo tantas diferenças. Mais de perto, é tudo muito diferente: o véu, as inúmeras orações diárias, a submissão feminina, a concepção de impureza quando estão menstruadas e com ela a proibição de lerem o Livro Sagrado nessa ocasião. Me senti a própria pagã quando pedi uma cerveja num bar e o rapaz me respondeu que não vendia e ainda me olhou incrédulo: - a senhora não vê que estamos do lado de duas mesquitas? Pedi desculpas pela pouca sensibilidade religiosa. Difícil para quem não compreende ou não está habituado aos rituais e não compactua com as mesmas crenças.
A questão da não mistura de religiões também é importante: muçulmano se casa com muçulmano, e cristão com cristão, e se o homem se interessa por uma mulher de outra religião, alguém (a mulher) tem que se converter, o que não é encarado de forma natural, para não dizer um absurdo com conseqüências duvidosamente perigosas. A virgindade e o divórcio são tabus para os cristãos ortodoxos, para os muçulmanos, no entanto, a virgindade, sim, é um tabu, mas o divórcio nem tanto desde que este seja de interesse masculino.
Voltando à “Maria”, na verdade, fiquei encantada em conhecer-la. Tem um jeito bonito, feliz de encarar a vida, não complica, e leva um ar sonhador realmente encantador. O que dizer mais a seu respeito? Lhe desejo tudo de bom, e se pudesse, lhe diria em português: “- A você, nova e já querida amiga, desejo um bom casamento; que sua vida seja um feliz conto das mil e uma noites, e que eu ainda possa contar a história desse matrimônio iniciando assim “-Era uma vez, no Cairo ...”