domingo, 9 de novembro de 2008

Estou em casa

A mim sempre me pareceu estranho o desapego do Mundo de cá ao trabalho, não digo ao dinheiro em si, mas ao trabalho mesmo. Não resta a menor dúvida de que nós, do Mundo de lá, somos um pouco escravos dele, temos muito conscientes os valores americanos de que devemos prestar um serviço da melhor qualidade custe o que custar, de que “exemplo de dignidade” é sair muito cedo, se matar de trabalhar e voltar para casa com a sensação do dever cumprido, “o trabalho dignifica o homem”. Pois bem, salvando-se algumas exceções, a visão geral aqui é que somos pobres coitados ali. E somos mesmo. O espanhol não se expõe a certos trabalhos, sobretudo aos mecânicos e braçais, os evita claramente. Em números de horas pode até ser que equivala, do ponto de vista legal, mas produtividade, profissionalismo não são levados muito a sério. Toda generalização é meio burra, é verdade, e vou recair nela para expor meu ponto de vista, mas seguramente sinto que os princípios de modernidade comercial são encarados de forma muito relativa no Mundo de cá. Vejamos. Após as férias de verão, que são tiradas generalizadamente, até o padre na missa comentou sobre a depressão pós-férias que se deu conta quando desceu do avião ao voltar da praia. Aliás, depressão pós-férias é algo comentado em todos os jornais locais El País, El Mundo, ABC, Público. É impressionante. Impressionante mesmo foi quando meu marido precisava comprar um presente de casamento e, depois de muito sacrifício, conseguiu chegar 5 minutos antes da loja fechar. O distinto cavalheiro, dono da birosca, disse-lhe que não poderia lhe atender porque não lhe daria tempo, fazer tudo em 5 minutos (pasmem!). E era o dono. O mesmo aconteceu comigo ao tentar cortar o cabelo aqui perto e chegar 10 minutos antes da Peluqueria fechar....! “Lo siento, está muito perto de fechar e não poderemos lhe atender. Volte amanhã.” Increíble. Comecei uma reflexão: minhas coisas do Brasil tardaram 7 meses a chegar, meu interfone não funciona desde que cheguei pois vez ou outra vem alguém dizendo que não há problema com ele, o problema é que não colocamos ele corretamente no gancho. Passei um mês para conseguir colocar meu filho numa escola. Comprei um carro usado que necessita de uma chave de segurança para trocar o pneu (que na hora da compra, não percebemos que não estava nele), e até agora espero a danada da chave. E ainda falamos dos nossos baianos! Tinha uma moça que vinha passar ferro nas roupas aqui em casa, e certo dia pedi para que ela comprasse cebola no supermercado ao lado. Ela me respondeu: Lo siento, mas está chovendo! Eu fiquei pasma, mas ao invés de discutir, preferi que ela permanecesse passando a minha roupa assim mesmo... melhor ela do que eu, prefiro ficar sem cebola. As inúmeras vezes que fui à universidade em busca de informações e voltei de mãos abanando... enfim! Exemplos do tipo, temos centenas, é que a maldita aculturação vai permitindo que não nos surpreendamos mais com nada. Estava lendo Sérgio Buarque de Holanda e já percebi que citarei ele bastante por aqui. Ele disse:

"Um fato que não se pode deixar de tomar em consideração no exame da psicologia desses povos é a invencível repulsa que sempre lhes inspirou toda moral fundada no culto ao trabalho. (...) a ação sobre as coisas, sobre o universo material, implica submissão a um objeto exterior, aceitação de uma lei estranha ao indivíduo. Ela não é exigida por Deus, nada acrescenta à sua glória e não aumenta nossa própria dignidade.(...) É compreensível assim que jamais se tenha naturalizado entre gente hispânica a moderna religião do trabalho e o apreço à atividade utilitária. Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobililante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal é uma vida de grande senhor, exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação. (...) O que entre eles predomina é a concepção antiga de que o ócio importa mais que o negócio e de que a atividade produtora é, em si, menos valiosa que a contemplação e o amor.

Partindo desse ponto de vista, não sou mais estrangeira, estou em casa. UFA! Já não era sem tempo.