foto de propriedade do El País
No site
brasilhaiti.com, o Professor Ricardo Seitenfus, brasileiro, gaúcho, representante especial do secretário-geral da OEA em Porto Príncipe, relata o que presenciou. Por pouco, não se tornou ele mesmo em uma vítima direta da tragédia:
"Cheguei a Porto Príncipe na madrugada de sexta-feira. O edifício onde residi por um ano desabou completamente. Perdi grande parte dos vizinhos e a totalidade de meus objetos pessoais. Tivesse eu adiado minhas férias por cinco dias, estaria também sob aqueles escombros. Trago comigo apenas a mochila que veio do Brasil, com alguma roupa e três cachimbos. Durmo no acampamento das Nações Unidas. Busco notícias dos cerca de cem funcionários que se encontram a serviço da Organização dos Estados Americanos no Haiti, dos muitos amigos universitários, diplomatas, políticos e militares. A maior parte de meus interlocutores diários faleceu.
Entre as incontáveis preocupações que me assaltam hoje, sublinho a relação entre a natureza e a obra humana. Todo terremoto de tal escala causa danos de monta. Porém, se a catástrofe no Haiti alcançou tamanha amplitude, especialmente se centenas ou milhares de pessoas seguem morrendo por falta de socorro, isto se deve à inexistência prévia de um Estado proficiente em saúde pública, habitação e trabalho. A cooperação sul-americana no Haiti, extraordinário avanço da política externa da região, estava buscando exatamente forjar os meios para superar os limites de uma missão de paz tradicional, beneficiando a população de modo estrutural e permanente com variados projetos, inclusive de agricultura familiar e saneamento básico.
O Haiti vive na urgência e na precariedade desde muito antes da tragédia do presente. Trata-se de um Estado débil, dependente da ajuda internacional. O território foi particularmente castigado por catástrofes naturais. Porém, o atraso no desenvolvimento do Haiti deve-se também a outros fatores, entre os quais destacam-se as ditaduras cruéis que produziram uma cultura política de privilégios e violência. Durante a ditadura da família Duvalier, sob a batuta dos famosos Papa e Baby Doc, entre as décadas de 1950 e 1980, o Haiti mergulhou na pobreza e na corrupção. O legado autoritário repercute em todas as dimensões da vida nacional.
Por tudo isso, o Brasil, em particular, deve orgulhar-se do trabalho lá realizado e persistir na ideia de trocar o mero (e sem fim) assistencialismo, ou a obsessão securitária, pela cooperação profunda, capaz de gerar autonomia. Os desafios da reconstrução são imensos, e apenas uma aliança entre os países das Américas será capaz de enfrentá-los. Nela, o Brasil deve manter e consolidar seu protagonismo. Eis um assunto de Estado, e não de governo. Os homens e as instituições se deixam conhecer plenamente no modo como reagem aos grandes traumas gravados pela História. O horror ora vivido pelo Haiti é um deles." (Professor Ricardo Seitenfus, para o site brasil_haiti.com)
Letra da música composta por Caetano, muito antes da tragédia deste ano:
"Quando você for convidado pra subir no adro
Da fundação casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se os olhos do mundo inteiro
Possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque um batuque
Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária
Em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada:
Nem o traço do sobrado
Nem a lente do fantástico,
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém, ninguém é cidadão
Se você for a festa do pelô, e se você não for
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer
Plano de educação que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
Do ensino do primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua sobre um saco
Brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
Diante da chacina
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui"