domingo, 5 de outubro de 2008

Esperanças e utopias

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"Sobre as virtudes da esperança tem-se escrito muito e parolado muito mais. Tal como sucedeu e continuará a suceder com as utopias, a esperança foi sempre, ao longo dos tempos, uma espécie de paraíso sonhado dos cépticos. E não só dos cépticos. Crentes fervorosos, dos de missa e comunhão, desses que estão convencidos de que levam por cima das suas cabeças a mão compassiva de Deus a defendê-los da chuva e do calor, não se esquecem de lhe rogar que cumpra nesta vida ao menos uma pequena parte das bem-aventuranças que prometeu para a outra. Por isso, quem não está satisfeito com o que lhe coube na desigual distribuição dos bens do planeta, sobretudo os materiais, agarra-se à esperança de que o diabo nem sempre estará atrás da porta e de que a riqueza lhe entrará um dia, antes cedo que tarde, pela janela dentro. Quem tudo perdeu, mas teve a sorte de conservar ao menos a triste vida, considera que lhe assiste o humaníssimo direito de esperar que o dia de amanhã não seja tão desgraçado como o está sendo o dia de hoje. Supondo, claro, que haja justiça neste mundo. Ora, se neste nestes lugares e nestes tempos existisse algo que merecesse semelhante nome, não a miragem do costume com que se iludem os olhos e a mente, mas uma realidade que se pudesse tocar com as mãos, é evidente que não precisaríamos de andar todos os dias com a esperança ao colo, a embalá-la, ou embalados nós ao colo dela. A simples justiça (não a dos tribunais, mas a daquele fundamental respeito que deveria presidir às relações entre os humanos) se encarregaria de pôr todas as coisas nos seus justos lugares. Dantes, ao pobre de pedir a quem se tinha acabado de negar a esmola, acrescentava-se hipocritamente que “tivesse paciência”. Penso que, na prática, aconselhar alguém a que tenha esperança não é muito diferente de aconselhá-la a ter paciência. É muito comum ouvir-se dizer da boca de políticos recém-instalados que a impaciência é contra-revolucionária. Talvez seja, talvez, mas eu inclino-me a pensar que, pelo contrário, muitas revoluções se perderam por demasiada paciência. Obviamente, nada tenho de pessoal contra a esperança, mas prefiro a impaciência. Já é tempo de que ela se note no mundo para que alguma coisa aprendam aqueles que preferem que nos alimentemos de esperanças. Ou de utopias."
Por José Saramago

Aos poucos, este blog passa a ser feito por mais do que uma insone - euzinha, claro! - mas vai se desenhando com a contribuição de alguns amigos e parentes, que apesar de não comentarem muito, deixam interessantes contribuições na minha caixa de entrada.

Sinceros agradecimentos, desta vez, a Antônio, que diferentemente dos demais, também enriquece este blog com seus comentários, e que me passou o link de Saramago com o texto acima. Para ele, aquele abraço!, e boa noite!, ou, seria buenos dias?!

Um comentário:

Unknown disse...

Gosto de deixar comentários. É uma forma de me fazer próximo e de estabelecer um canal de troca de idéias. Acaba sendo mais eficaz que e-mails porque contribui para estabelecer vínculos com outras pessoas, íntimas ou não, que também valorizam o debate. É esse o sentido de um blog.
Fico feliz que você tenha gostado do texto do Saramago. É um autor que conheço desde o início dos 90 e que expressa bem um modo de pensar que me atrai. Ele parece ser um pessimista inveterado, um velho mal-humorado e carrancudo, mas que revela nas entrelinhas do discurso uma visão profundamente humanista, de alguém que deposita sua crença não nas instituições, mas na honradez dos mais nobres sentimentos humanos, sentimentos estes que hoje somente parecem ser encontrados longe da sociedade de consumo, mas que, no fundo, estão em todos nós.
Entendo as razões da sua insônia. Talvez precisemos mesmo ficar insones em algumas situações. Mas na maior parte do tempo, precisamos dormir bem para termos força para encarar nossas lutas cotidianas e também, se for o caso, pela transcendência do nosso “tempo histórico” no sentido marxista desta expressão.
O resultado para vereador em Recife foi desolador. Fiquei triste. Impressionante a quantidade de vencedores inexperientes, inclusive uma parente nossa, que nem sei o que pensa sobre o país, sobre o mundo, sobre a política, sobre a cidade, sobre o urbano, sobre o Recife para Pernambuco, sobre Pernambuco para o Brasil, sobre o Brasil para o mundo,... E, certamente, não deve saber muito sobre a social-democracia, sobre aquilo que está pelo menos na sigla do partido pelo qual foi eleita, um dos dois partidos com condições mais favoráveis para fazer o próximo presidente deste país.
Tudo conseqüência de um sistema político que enfraquece os partidos e as idéias, mas que favorece o poder econômico, os grupos de interesse com seus enclaves nos meios jornalístico e que abre margem para candidatos “outsiders”, que podem representar qualquer coisa menos o sentido real da política. Uma pena. Mas aqui valem os períodos finais do texto do Saramago que você reproduz no blog: “Obviamente, nada tenho de pessoal contra a esperança, mas prefiro a impaciência. Já é tempo de que ela se note no mundo para que alguma coisa aprendam aqueles que preferem que nos alimentemos de esperanças. Ou de utopias.”.